Concurso "Escrever é viver- textos juvenis em tempo de pandemia", uma iniciativa do Instituto Multimédia.
O meu avô
O meu avô Zé nasceu a 4 de setembro
de 1944, em Miranda do Douro.
Aquando do seu nascimento, a sua mãe não
tinha o apoio de ninguém; era maltratada pela própria família, pois, naquele
tempo, ser mãe solteira não era algo aceite pela sociedade. Cresceu no meio
rural, onde sempre teve de ajudar no campo, cuidar dos animais e ocupar-se de
uma tia doente.
Entrou para a escola primária por volta
dos 8/9 anos e, ao chegar ao último ano, ou seja, no momento de fazer o chamado
exame da 4ª classe, a professora pediu-lhe a cédula. Ao ver que o apelido
(Lopes) do meu avô não era aquele que constava nas assinaturas dos testes (assinava
sempre com Diego, que era o apelido da mãe), ficou espantada, pois ignorava que
era filho de pai incógnito.
Naquela altura, mesmo sem ainda o
reconhecer verdadeiramente como filho, o progenitor, apesar de tudo, zelava
pela sua educação e, querendo incentivá-lo a estudar, prometeu-lhe então que,
se concluísse o exame final com sucesso, oferecer-lhe-ia uma bicicleta. Na
verdade, o meu avô ficou aprovado, mas o prometido tardava a aparecer. Vendo
toda esta injustiça à sua volta e sentindo-se um pouco desamparado, cresceu
nele uma enorme revolta interior. Consequentemente, recusava-se a desempenhar
as tarefas domésticas e agrícolas que lhe eram destinadas, acabando por
abandonar o lar materno para ir viver com uma tia, que morava numa aldeia
vizinha.
Num misto de revolta e de desejo de
afirmação, típico da adolescência, e tendo bem presente o episódio da História
de Portugal em que D. Afonso Henriques declarou guerra à sua própria mãe, o
mesmo decidiu o meu avô fazer com o pai. Assim, conseguiu gerar uma reação do
outro lado e, finalmente, aos 14 anos, recebeu a prometida e tão ambicionada bicicleta.
Contudo, havia ainda uma grande
mágoa dentro de si: o apelido Lopes nunca mais lhe era reconhecido e isso
entristecia-o. Certo dia, o pai do meu avô lá resolveu ir ao Registo Civil e
trouxe consigo uma nova cédula. Foi ter com o filho, que se encontrava a pastorear
os animais num terreno baldio, e atirou-lhe a nova cédula para o chão, com um semblante
carrancudo, avisando-o de que, dali em diante, se deveria portar melhor.
Por volta dos 20 anos, depois de ter
cumprido o serviço militar em Leiria, no Regimento de Artilharia nº4, tirou a
especialidade de escriturário porque já era uma pessoa muito instruída para
aquela época. Entregue a ele próprio, sem o apoio de ninguém, decidiu escrever
uma carta ao general responsável pelas províncias de Angola e Moçambique, pois
não tinha dinheiro. Um mês depois de a declaração ter ido a despacho, saiu na
ordem de serviço o número mecanográfico do meu avô, onde constava também que
seria colocado em Moçambique.
Chegou a Maputo em julho de 1966
para trabalhar como escriturário. Em fevereiro de 1974, nasceu a sua primeira
filha e, pouco tempo depois, deu-se a Revolução de 25 de abril, momento em que
voltou para Portugal com a sua família, como retornado. Neste regresso, ainda
aconteceu a desgraça do barco onde viajavam ter-se incendiado e terem perdido
todos os bens, ficando apenas com a roupa que tinham no corpo e com 20 mil
escudos no bolso.
No ano de 1976, nasceu o segundo
filho para grande alegria da família. Naquele tempo e, por ser um rapaz, sempre
andou na escola e estudou até à idade de 15 anos. Era um menino muito acarinhado
por toda a gente da aldeia, visto que era acólito na igreja, fazia parte do
grupo de Pauliteiros de Duas Igrejas e jogava futebol na Associação Desportiva.
Infelizmente, apesar de tudo parecer estar bem, este adolescente ansiava por
liberdade e, quiçá, por uma vida melhor que, naquela aldeia e naquele tempo,
não poderia ter, pois os pais obrigavam-no a trabalhar quer nas tarefas
agrícolas quer a cuidar dos animais, o que o impedia de viver a sua mocidade.
Aos 15 anos, suicidou-se (com pesticidas) e, até hoje, ninguém sabe o motivo
pelo qual o desfecho deste menino foi tão trágico.
Mais tarde, depois de a sua filha
ter a vida encaminhada, o meu avô tornou-se condutor manobrador de máquinas
industriais, tendo trabalhado numa empresa transformadora de inertes, durante 30
anos. No ano de 2001, nasceu a sua primeira neta, e, dois anos depois, ficou
viúvo. O nascimento da segunda neta, em 2008, trouxe-lhe novo alento, renovando
o seu espírito e prendendo-o à vida.
Aos 65 anos, em 2009, aposentou-se e,
tirou o curso das Novas Oportunidades, tendo ficado com equivalência ao 9º ano
de escolaridade e adquirido as noções básicas das Tecnologias de Comunicação e Informação,
que o capacitaram a utilizar com autonomia os computadores. Algum tempo depois,
participou num curso de poda e aprendeu ainda a tocar acordeão. Nos últimos
anos de vida, dedicou-se à plantação de árvores de frutos secos, designadamente
amendoeiras, nogueiras e avelãzeiras.
Porém,
decorrida uma década, a sua vitalidade e alegria começaram a esmorecer. Uma
permanente indisposição e fadiga consumiam-no e sentia-se que o seu estado de
saúde piorava dia após dia. Fora cinco vezes ao hospital de Miranda do Douro e
sempre lhe ocultaram a verdade, receitando-lhe medicamentos de proteção do
estômago (e não tratando com a devida urgência da sua grave doença). Assim, a 8
de fevereiro de 2020, a filha e a neta mais velha, resolveram ir buscá-lo a
Duas Igrejas, dado o seu estado de saúde se ter agravado e os médicos não
apresentarem explicações claras nem soluções.
No
dia 10 de fevereiro do mesmo ano, deu entrada no Hospital de Viana do Castelo,
sendo rapidamente atendido graças ao apoio de uma enfermeira, grande amiga de
minha mãe. Após ter feito vários exames, os médicos revelaram-lhe, ao fim de três
dias, que tinha um cancro no estômago em estado avançado e que não poderia
fazer quimioterapia porque o seu coração já só funcionava a menos de metade da
sua capacidade.
Perante
tal “veredicto”, toda a família ficou atónita, sentindo uma grande consternação
e impotência. Nessa altura, estávamos na primeira fase da Covid-19, o que não
favoreceria a situação. O meu avô ficou apenas hospitalizado dois dias nos
cuidados paliativos para acertar a medicação, regressando a casa da filha, onde
passou o resto dos seus dias com todo o conforto e amor da família.
O meu avô acabou por falecer a 11 de
maio de 2020, em Viana do Castelo, vítima de um cancro no estômago, que,
infelizmente, não foi detetado a tempo.
A parte mais difícil e dolorosa foi na
hora da despedida, visto que, em plena pandemia, não pudemos realizar a
merecida cerimónia religiosa, o que não permitiu que muitos dos seus amigos e
familiares estivessem presentes para um último adeus.
Partiu para sempre, mas deixou os
seus ensinamentos, o seu espírito guerreiro e esta mensagem para as suas netas:
“Sejam pessoas educadas e honestas durante a vida. Tentem aprender sempre mais
para se tornarem cultas. Não desistam daquilo que são e lutem pelos vossos
objetivos, sem nunca querer magoar o próximo. Nunca é tarde para aprender e
sejam felizes!”.
Bem-aventurados os netos que têm um
avô como um meu avô Zé. Têm, sim, porque permanecerá bem vivo nas nossas
memórias e sempre presente nos nossos corações.
Cátia Oliveira,
7º D, nº 2
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